25 de outubro de 2009

Divagação sobre as ilhas de Carlos Drummond de Andrade

Quando me acontecer alguma pecúnia, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto dos ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.

De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja, a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o da liberdade nas ilhas. E, contentor do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses que se acomodam à realidade, elidindo-a?

A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago com a graça de uma flor criada para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano. Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades de ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.

E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos regatos — tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio dela. A mesma solidão existe, com diferentes pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda o argumento da felicidade — “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua Pasárgada: mas será que se procura realmente nas ilhas uma ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? E só se alcançaria tal mercê, de índole extremamente subjetiva, no regaço de uma ilha, e não igualmente em terra comum?

Quando penso em comprar uma ilha, nenhuma dessas excelências me seduz mais que as outras, nem todas juntas constituem a razão de meu desejo. Sou pouco afeiçoado à natureza, que em mim se reduz quase que a uma paisagem moral, íntima, em dois ou três tons, só que latejante em todas as partículas. A solidão, carrego-a no bolso, e nunca me faltou menos do que quando, por obrigações de ofício, me debruçava incessantemente sobre a vida dos outros. E felicidade não é em rigor o que eu procuro. Não. Procuro uma ilha, como já procurei uma noiva.

A ilha me satisfaz por ser uma porção curta de terra (falo de ilhas individuais, não me tentam aventuras marajoaras), um resumo prático, substantivo, dos estirões deste vasto mundo, sem os inconvenientes dele, e com a vantagem de ser quase ficção sem deixar de constituir uma realidade. A casa de campo é diferente. A continuidade do solo torna-a um pobre complemento dessas propriedades individuais ou coletivas, públicas ou particulares, em que todo o desgosto, toda a execrabilidade, toda a mesquinhez da coisa possuída, taxada, fiscalizada, trafegada, beneficiada, herdada, conspurcada, se nos apresenta antes que a vista repare em qualquer de seus eventuais encantos. A casa junto ao mar, que já foi razoável delícia, passou a ser um pecado, depois que se desinventou a relação entre homem, paisagem e moradia. Tudo forma uma cidade só, torpe e triste, mais triste talvez que torpe. O progresso técnico teve isto de retrógrado: esqueceu-se completamente do fim a que se propusera, ou devia ter-se proposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável, mas invisível. Fez-se numa escala de massas, esquecendo-se do indivíduo, e nenhuma central elétrica de milhões de kw será capaz de produzir aquilo de que precisamente cada um de nós carece na cidade excessivamente iluminada: uma certa penumbra. O progresso nos dá tanta coisa, que não nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar fora. Tudo é inútil e atravancador. A ilha sugere uma negação disto.

A ilha deve ser o quantum satis selvagem, sem bichos superiores à força e ao medo do homem. Mas precisa ter bichos, principalmente os de plumagem gloriosa, com alguns exemplares mais meigos. As cores do cinema enjoam-nos do colorido, e só uma cura de autenticidade nos reconciliará com os nossos olhos doentes. Já que não há mais vestidos de cores puras e naturais (de que má pintura moderna se vestem as mulheres do nosso tempo?), peçamos a araras e periquitos, e a algum suave pássaro de colo mimoso, que nos propiciem as sensações delicadas de uma vista voluptuosa, minudente e repousada.

Para esta ilha sóbria não se levará bíblia nem se carregarão discos. Algum amigo que saiba contar histórias está naturalmente convidado. Bem como alguma amiga de voz doce ou quente, que não abuse muito dessa prenda. Haverá pedras à mão — cascalho miúdo — que se possa lançar ao céu, a título de advertência, quando demasiada arte puser em perigo o ruminar bucólico da ilha. Não vejo inconveniente na entrada sub-reptícia de jornais. Servem para embrulho, e nas costas do noticiário político ou esportivos há sempre um anúncio de filme em reprise, invocativo, ou qualquer vaga menção a algum vago evento que, por obscuro mecanismo, desperte em nós fundas e gratas emoções retrospectivas. Nossa vida interior tende à inércia. E bem-vinda é a provocação que lhe avive a sensibilidade, impelindo-a aos devaneios que formam uma crônica particular do homem, passada muitas vezes dentro dele, somente, mas compensando em variedade ou em profundeza o medíocre da vida social.

Serão admitidos poetas? Em que número? Se foram proscritos das repúblicas ideais e das outras, pareceria cruel bani-los também da ilha de recreio. Contudo, devem comportar-se como se poetas não fossem: pondo de lado os tiques profissionais, o tecnicismo, a excessiva preocupação literária, o misto de esteticismo e frialdade que costuma necrosar os artistas. Sejam homens razoáveis, carentes, humildes,inclinados à pesca e à corrida a pé, saibam fazer alguma coisa simples para o estômago, no fogão improvisado. Não levem para a ilha os problemas de hegemonia e ciúme.

Por aí se observa que a ilha mais paradisíaca pede regulamentação e que os perigos da convivência urbana estão presentes. Tanto melhor, porque não se quer uma ilha perfeita, senão um modesto território banhado de água por todos os lados e onde não seja obrigatório salvar o mundo. A idéia de fuga tem sido alvo de crítica severa e indiscriminada nos últimos anos, como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, de uma caceteação. Como se devesse o homem consumir-se numa fogueira perene, sem carinho para com as partes cândidas ou pueris dele mesmo, que cumpre preservar principalmente em vista de uma possível felicidade coletivista no futuro. Se se trata de harmonizar o homem com o mundo, não se vê porque essa harmonia só será obtida através do extermínio generalizado e da autopunição dos melhores. Pois afinal, o que se recomenda aos homens é apenas isto: “Sejam infelizes, aborreçam o mais possível aos seus semelhantes, recusem-se a qualquer comiseração, façam do ódio um motor político. Assim atingirão o amor.” Obtida a esse preço a cidade futura, nela já não haveria o que amar.

Chega-se a um ponto em que convém fugir menos da malignidade dos homens do que da sua bondade incandescente. Por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento de salvar o mundo é dos que acarretam as mais copiosas — e inúteis — carnificinas.

Estas reflexões descosidas procuram apenas recordar que há motivos para ir às ilhas, quando menos para não participar de crimes e equívocos mentais generalizados. São motivos éticos, tão respeitáveis quanto os que impelem à ação o temperamento sôfrego. A ilha é meditação despojada, renúncia ao desejo de influir e de atrair. Por ser muitas vezes uma desilusão, paga-se relativamente caro. Mas todo o peso dos ataques desfechados contra o pequeno Robinson moderno, que se alongou das rixas miúdas, significa tão-somente que ele tinha razão em não contribuir para agravá-las. Em geral, não se pedem companheiros, mas cúmplices. E este é o risco da convivência ideológica. Por outro lado, há um certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.

A ilha é, afinal de contas, o refúgio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir. Amemos a ilha.
Passeios na ilha: subúrbios da calma. En: Obra completa, p. 625-28.

Como as mulheres escolhem os seus homens

Marcelo Carneiro da Cunha, para o Terra Magazine


Deu no New York Times, portanto tem que ser verdade. Falido ou não, o vetusto (adoro essa palavra e não encontrava jeito de usar) órgão da tradicional imprensa escrita não mente em serviço, dizem. Então aqui vai: as mulheres não fazem a menor ideia do que elas querem, desejam ou sentem. Ta lá, impresso e claro: a pesquisadora Meredith Chivers fuçou tanto que comprovou o que os homens em geral e esse aqui em particular vêm afirmando há décadas.


Homens são mais simples do que um protozoário quando o assunto é desejo. Sabem o que querem, do que gostam, e o que falam é exatamente o que sentem. Já as mulheres se comportam mais ou menos tão aleatoriamente quanto um elétron super-aquecido. O que sentem não tem a ver com o que veem, o que falam não tem muito a ver com o que sentem, e o que afirmam pode ser tão objetivo e sincero quanto uma entrevista com o Paulo Maluf. Enfim a verdade comprovada!


O tema era um tanto específico: o que homens e mulheres sentem diante de cenas eróticas. O que os excita, o que não excita, o que dizem e o que realmente sentem. No seu rigor científico, Meredith, digamos, matou a cobra e mostrou o pau. Ou o ligou a eletrodos, ao menos. Ela colocou medidores nos eufemisticamente chamados de órgãos sexuais dos entrevistados e deu a eles blocos de notas, onde eles registravam o que sentiam ao presenciar cenas de sexo entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, e macacos. Sim, macacos. Parece que a nossa pesquisadora além de rigorosa é também esquisitona.


De qualquer maneira, o que o estudo demonstrou? A) que os homens hetero se excitam com cenas entre heteros, e eventualmente mulheres do mesmo sexo. Não sentem nada diante de cenas gays. E os homens gays equivalentemente não dão bola, digamos, para cenas entre heteros. É o que descrevem no bloco de notas corresponde ao que os medidores medem.


B) Já as mulheres? Se excitam aleatoriamente com todas as cenas, e o que descrevem no bloco não corresponde ao que os instrumentos medem. Ou as moças mentem descaradamente, ou não fazem idéia do que o que afinal estão sentindo ao verem dois macaquinhos soltando a franga.
Esse, senhoras e senhores, é o mundo em que vivemos.


O que isso me fez indagar aqui em casa, olhando para o meu dedão e conselheiro foi: se as mulheres fazem tão pouca idéia do que gostam, do que o que sentem, do que desejam, como, afinal como, elas fazem as suas escolhas? Por que uma mulher vai decidir por mim, e não pelo idiota aqui ao lado? Quem me faz acreditar que fui selecionado entre milhares de outros machos Alfa, Beta, Gama, ou Delta pelas minhas muitas qualidades, além do meu nariz de deus grego? Foram os meus muitos anos de estudo, foram as muitas horas na academia, foi o meu senso de humor altamente desenvolvido, ou o meu dedão do pé, como ele sempre sugere? O meu carro com teto solar? Meus genes cuidadosamente selecionados e aprimorados em barris de carvalho?


Como confio desconfiando nas opiniões do meu dedão, fui fazer a coisa certa, consultado uma bela e genial amiga e psicanalista. Ela foi direta e clara: as mulheres escolhem seus homens com base no que eles tenham. O que eles precisam ter define o que essas mulheres são. Simples assim!

Ou seja, para uma certa mulher você precisa ter o uniforme completo do Corinthians e se comportar de acordo com um membro da Gaviões da Fiel! Para outra, basta você ter uma coleção de mestrados e doutorados e uma carreira próspera em universidades americanas. Ou você vai ser escolhido pela sua mãe, ou pela sua coleção de figurinhas de mamíferos ("tão menininho, quem resistiria?"), pela sua tendência a dialogar com o mundo através da filosofia pacifista do jiu-jitsu. Pela sua rebeldia e dificuldade com coisas como emprego e banho.
Ou outros milhares de atributos igualmente aleatórios. Fácil.


Portanto, invista em tudo. Seja tão diversificado quanto um Da Vinci contemporâneo, treine seus conhecimentos de inglês e leia a Caras, compre um patinete e vista gravata, atire em todas as direções, já que não existe qualquer método humano para você compreender o processo seletivo de sua musa idolatrada salve salve.


E, em especial, me sugere meu dedão, arrume uma barriga de tanquinho, autêntica ou importada. Em uma pesquisa realizada por uma cientista com seu laboratório instalado em diferentes pontos da capital paulista esse foi o único item - prestem atenção, único! - a unir toda a mulherada em torno de ao menos um ideal.


Simples assim, fácil assim, e olho meu dedão com suspeita de que ele possa estar exagerando. Mas justamente nesse instante começa um jogo do Chelsea contra o resto do mundo e meu dedão, como qualquer parte de homem que preste, se perde em devaneios e nunca mais, nunca menos, dá atenção para o que quer que seja, porque o futebol, para nós, não é uma questão de vida ou morte, mas algo muito mais importante do que isso, como todos, todos mesmo, e algumas iluminadas, sabem.


Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".

Mestre Caco

Em entrevista à Revista Versatille, Caco Barcellos resume em poucas palavras o que penso.
É importante que o jornalista seja um idealista?
Fundamental. Algumas carreiras exigem do profissional essa postura de inquietude, pelo menos, intelectual. Mas acho que o jornalista, assim como os artistas, músicos, poetas, precisa ter o desejo de mudança. Mesmo se as coisas estiverem andando bem, por que não melhorá-las, ainda mais em uma sociedade injusta como a nossa? Desejo de mudança é essencial.
Crédito: Camila Dilélio.